Foto: Agência Brasil

A principal política pública de transferência de renda à população ampliou o acesso a consultas pré-natais e ajudou a reduzir em 18% o risco de morte materna entre as mulheres mais pobres, se considerado um período de dez anos ao longo das últimas duas décadas. As conclusões são do estudo “Avaliação do efeito de intervenções de proteção social e de saúde na mortalidade materna entre as mulheres de baixa renda do Brasil”, desenvolvido pela pesquisadora Flávia Jôse Alves, egressa do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. A pesquisa é a vencedora do 17º Prêmio Capes de Tese, edição 2022, na área da Saúde Coletiva.

A 17ª edição do Prêmio Capes de Tese reconheceu as melhores teses de doutorado defendidas no Brasil em 2021, distribuídas em 49 áreas do conhecimento. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) teve duas teses vencedoras, e outras duas receberam menção honrosa.

Defendida em agosto do ano passado, a tese é construída a partir de três estudos elaborados com metodologias e objetivos específicos. Todo o trabalho foi orientado pelo professor Maurício Barreto (ISC/UFBA), coordenador do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz), e coorientado pela professora Dandara Ramos (ISC/UFBA).

A primeira investigação da tese buscou avaliar a associação a médio e longo prazo entre a cobertura do Programa Bolsa Família e a razão de mortalidade materna em 2.548 municípios brasileiros, entre os anos de 2004 e 2014. Os resultados mostraram que o programa esteve significativamente associado à queda da mortalidade materna, com impacto proporcional aos níveis de cobertura e tempo de implementação do programa. O programa “também esteve associado ao aumento do número de partos em estabelecimentos de saúde, à redução de casos de gestações sem nenhuma consulta pré-natal e à queda na taxa de letalidade hospitalar nos municípios analisados”, explica a pesquisadora Flávia Jôse Alves.

A segunda investigação avaliou o impacto do programa sobre a mortalidade materna na chamada Coorte de 100 milhões de Brasileiros, plataforma coordenada pelo Cidacs/Fiocruz, que reúne registros eletrônicos de mais de 100 milhões de indivíduos candidatos a programas de proteção social no Brasil a partir de dados do Cadastro Único.

O levantamento incluiu, aproximadamente, 6,7 milhões de mulheres em idade reprodutiva, de 10 a 49 anos, para o período de 2004 a 2015. Dessas, 4.056 morreram por causas maternas. “Os resultados apontaram que as beneficiárias tiveram uma chance 18% menor de morte materna quando comparadas às não beneficiárias do programa”, destaca a pesquisadora. Ainda de acordo com o estudo, quanto maior o tempo de acesso ao benefício, maior também foi a redução do risco. O programa também elevou as consultas pré-natais e o intervalo entre os partos, com maior efeito sobre os grupos de mulheres mais vulneráveis.

Já a terceira investigação buscou avaliar a relação entre a cesariana e os riscos de mortalidade materna. A amostra contou com registros de 5,2 milhões de brasileiras, com idade entre 10 e 49 anos, e que tiveram filhos nascidos vivos no período de 2011 a 2015. Segundo a pesquisa, a cesariana foi associada a um risco crescente de mortalidade materna, mesmo em grupos em que são esperadas menores taxas e com necessidades de cesárea. “O estudo sugere que o uso excessivo de cesariana pode ser um fator de risco para mortalidade materna em comparação ao parto vaginal”, alerta a pesquisadora.

Da semente à investigação

Flávia Jôse Alves, vencedora do Prêmio Capes de Tese 2022, na área da Saúde Coletiva – Foto: Arquivo pessoal

Nascida no município de Itaetê, no interior da Bahia, Flávia Jôse Alves é graduada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestra em Saúde Comunitária pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA).

O interesse pelo tema da mortalidade materna surgiu há pouco mais de uma década, quando ainda realizava a Residência Multiprofissional em Saúde da Família pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Na época, Flávia participava das reuniões de implantação da Rede Cegonha no Brasil, programa do Ministério da Saúde que propõe a criação de uma rede de cuidados para atenção às gestantes e puérperas.

Segundo a pesquisadora, a experiência e o contato com as mulheres em situação de vulnerabilidade lançaram luz sobre a importância de investigar o impacto de políticas sociais, como o Programa Bolsa Família, na mortalidade materna e nos seus determinantes. “Nossos resultados reforçam como as políticas sociais, ao longo do tempo, podem não apenas reduzir a desigualdade social, mas ter impactos importantes na saúde”, destaca a pesquisadora se referindo aos resultados da tese de doutorado construída ao longo de quatro anos.

Entre os diferenciais do estudo, ela chama atenção para o uso de bases nacionais de dados em saúde para a produção de informações sobre os fatores de risco da mortalidade materna, bem como para a avaliação de intervenções públicas para a sua redução. “Os dados da Coorte de 100 milhões de brasileiros garantiram um poder estatístico sem precedentes para a avaliação de políticas públicas, tendo o potencial de colaborar para o delineamento de estratégias de prevenção para evitar estes óbitos considerados, em sua maioria, evitáveis. Além disso, os dados em painel continuam sendo uma ferramenta poderosa para a avaliação de intervenções públicas, o que é especialmente importante em países de baixa e média renda, onde o financiamento é limitado”, observa.

Para Flávia, as altas taxas de mortalidade materna revelam que ainda não superamos esse grave problema de saúde pública, fortemente relacionado à pobreza e com distribuição heterogênea dos riscos no território nacional. Ela também alerta para os contextos de pandemia de Covid-19 e instabilidade política, que afetaram de forma significativa a prestação de cuidados de saúde no Brasil nos últimos anos.

“É preciso intensificar os esforços para manter e implementar políticas sociais adequadas em conjunto com a melhoria da qualidade da assistência pré-natal e obstétrica. Buscar uma abordagem global para qualidade e igualdade da saúde materna, apoiando a redução de desigualdades e a implementação de cuidados respeitosos e baseados em evidências para todas, é uma necessidade urgente”, aponta.

Melhor tese na Saúde Coletiva

Vencedora na área da Saúde Coletiva, Flávia Jôse Alves concorre agora ao Grande Prêmio Capes de Tese, que será outorgado para o melhor trabalho selecionado entre os vencedores da premiação em três grandes áreas.

O orientador da tese, professor Maurício Barreto (ISC/UFBA), destaca que o trabalho é resultado do esforço pessoal de uma doutoranda brilhante e representa o reconhecimento de uma linha de pesquisa sobre os impactos das políticas sociais na saúde, consolidada pelo Instituto de Saúde Coletiva da UFBA ao longo de quase três décadas. “O estudo de Flávia está inserido nessa linha de pesquisa ao mostrar os efeitos e os benefícios do Bolsa Família num aspecto importante da saúde da população: a saúde materna. É uma vitória para todos nós”, comemora.

A professora Dandara Ramos, coorientadora da tese, destaca a qualidade do trabalho desenvolvido, especialmente pelo uso de big data e metodologias de avaliação de impacto bastante rigorosas para fazer inferências sobre o risco da mortalidade materna, em nível nacional, com representatividade para toda a população do Cadastro Único.

“A tese tem uma contribuição muito importante para o campo da Saúde Coletiva, pois mostra o papel da determinação social sobre a morte materna e como o Estado, o SUS e as políticas de proteção social podem ajudar nesse contexto”, aponta.

Para a professora, o prêmio da Capes representa um sinal de resistência frente ao desfinanciamento da educação e ao sucateamento da pesquisa nos últimos anos. “Flávia é uma pesquisadora jovem, negra, do interior do nordeste. Esse prêmio é um reconhecimento da sua competência e de todas as instituições envolvidas na formação dos nossos pesquisadores”.

Os próximos passos acadêmicos de Flávia Jôse também já estão traçados. Pós-doutoranda pelo Cidacs/Fiocruz, ela viaja neste mês de setembro para passar um ano nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard, onde pretende desenvolver a segunda parte da sua pesquisa sobre a avaliação de políticas públicas na saúde mental de jovens no Brasil.