Foto: Mohammad Ghannam/Médicos Sem Fronteiras (MSF)

Em junho de 2019, três meses após o Ciclone Idai atingir o centro de Moçambique, autoridades sanitárias relataram um surto de pelagra em Nhamatanda, uma vila localizada na Província de Sofala, no centro do país africano. A tempestade tropical foi acompanhada de fortes chuvas, inundações e destruição, o que agravou a escassez de alimentos e serviu de gatilho para o surto da doença na região. É o que aponta um estudo realizado pelo Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, em parceria com o Instituto Nacional de Saúde de Moçambique, e publicado recentemente no The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, periódico de referência na área de Medicina e Higiene Tropical no mundo.

A pelagra é uma doença rara causada pela deficiência de vitamina B3 (niacina) e triptofano (aminoácido essencial) no corpo. O quadro clínico é caracterizado pela chamada tríade dos “Ds”: dermatite, demência e diarreia, e pode levar o paciente à morte se não houver tratamento adequado. Até meados do século XX, a pelagra foi considerada um problema de saúde pública, mas atualmente é uma doença incomum por conta de dietas nutricionalmente mais enriquecidas.

Segundo a pesquisa, o ciclone reduziu o consumo de niacina para abaixo do limite que protegia a população atingida. Entre julho de 2019 e março de 2020, o sistema de saúde de Moçambique registrou 3.590 casos de pelagra no país. Destes, 2.283 (63%) foram registrados somente em Nhamatanda. A partir desses dados, os pesquisadores aplicaram um protocolo na região para identificar os fatores associados à ocorrência dos casos e explorar o impacto percebido na segurança alimentar. Eles avaliaram o acesso e o consumo dos alimentos pela população antes e depois da chegada do ciclone Idai.

A investigação é resultado da tese elaborada pelo pesquisador moçambicano Vánio Mugabe, doutorando em Saúde Coletiva pelo ISC/UFBA e professor da Universidade Licungo, em Quelimane, Moçambique. O estudo foi orientado pelo professor Guilherme Ribeiro (ISC/UFBA) e Dr. Eduardo Samo Gudo, diretor-geral adjunto do Instituto Nacional de Saúde (INS) de Moçambique. “A pesquisa chama atenção para um problema de saúde pública enraizado na região, cuja solução passa pelo empoderamento da população local sobre técnicas que incrementam a produção e a necessidade de introduzir novas culturas para melhorar a dieta e, consequentemente, a condição de vida dessas pessoas”, explica Vánio Mugabe.

Para avaliar a segurança alimentar na região, os pesquisadores entrevistaram 69 chefes de família, distribuídos em seis aldeias no distrito de Nhamatanda. Os resultados apontam que 51% das famílias estavam sofrendo de escassez de alimentos antes mesmo da passagem do ciclone. Também foram coletados dados sobre o padrão alimentar de 121 indivíduos acometidos pela pelagra durante o surto, comparando-os com outras 121 pessoas que não desenvolveram a doença no período.

De acordo com a amostra, as mulheres foram as mais vulneráveis, representando 91% dos casos registrados de pelagra, assim como as pessoas com menor escolaridade. Para os pesquisadores, o aumento dos riscos nas mulheres pode ser explicado tanto por fatores culturais (mulheres que se privam da alimentação em benefício dos próprios filhos ou maridos), como fisiológicos (picos hormonais e maiores necessidades corporais durante a gravidez e amamentação).

O diagnóstico de casos suspeitos foi feito clinicamente, mediante a observação de sinais dermatológicos típicos da doença, como a presença de dermatite bilateral e simétrica em regiões do corpo expostas ao sol (pescoço, rosto, lábios, mãos, braços e pernas). Entre os sintomas, a dermatite (pele áspera) apareceu nos braços (92,0%), rosto (41,6%), pescoço (40,7%), lábios (23,0%), tórax (5,3%) e pernas (2,7%). Em 6,6% dos casos, os indivíduos tiveram estomatite e 3,3% diarreia. Não houve nenhum registro de hospitalização no período analisado.

A crise humanitária pós Idai

Dois anos após a passagem do Ciclone Idai, a situação nas regiões atingidas ainda é crítica. Apesar do apoio oferecido pelo governo de Moçambique, através do Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres e seus parceiros, Mugabe alerta para o número expressivo de famílias que ainda enfrentam dificuldades para garantir cesta básica e uma dieta adequada. “Essas famílias não têm habitação condigna, enfrentam escassez de água potável e acesso deficiente aos serviços básicos de saúde”, completa.

O pesquisador destaca ainda a chegada de outros dois ciclones, Chalane e Eloise, que atingiram as mesmas regiões em dezembro de 2020 e janeiro de 2021, respetivamente. “Soma-se a isso a pandemia da Covid-19, que influenciou negativamente o retorno das populações às atividades do dia a dia, como o comércio e agricultura familiar, que representam a principal fonte de renda e subsistência dessas famílias”.

Na região norte de Moçambique, mais de 700 mil pessoas deixaram as zonas de origem por conta de ataques terroristas e passaram a morar em centros de acolhimento ou em casas de familiares. Mugabe observa que parte dessas famílias também foi assolada pelo ciclone Kenneth, que atingiu o país em 2019. “Esses eventos podem esgotar a capacidade de resiliência das famílias afetadas e servir de gatilho para vários problemas de saúde, incluindo a pelagra”, avalia.

Atualmente, os riscos de pelagra estendem-se a outros países que enfrentam situação de pobreza semelhante, choques climáticos e desastres naturais recorrentes. Em Malawi, país que faz fronteira com Moçambique, por exemplo, já houve surto de pelagra entre 2015 e 2016. “Estudos mostram que o risco é maior entre populações cuja dieta é a base de milho que não passou pela nixtamalização, um processo para aumentar a biodisponibilidade de niacina e que consiste no cozimento e maceração do alimento em solução alcalina”, explica.

A pesquisa faz ainda um alerta sobre a necessidade de revisão do modelo de assistência às populações em situação de vulnerabilidade e que sofrem ciclicamente com cheias, ciclones, secas ou vivem na condição de refugiados. “Para além da distribuição de alimentos, deve haver uma ação paralela da disponibilização de suplementos vitamínicos que possam suprir o déficit nutricional, sobretudo para populações de maior risco, incluindo mulheres gestantes e lactantes, crianças e idosos”, conclui.