Pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA), Doutor em Saúde Pública (Universidade de Montreal) e coordenador do eixo temático “Acompanhamento das Decisões Judiciais Relativas à Saúde”, Luis Eugenio de Souza é o entrevistado do mês no Observatório de Análise Política em Saúde. No bate-papo, o coordenador do Programa de Economia, Tecnologia e Inovação em Saúde do ISC (PECS) fala sobre os impactos do fenômeno da judicialização na saúde, sua experiência como presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entre 2012 e 2015, além das lutas e tensões no campo da Saúde Coletiva. O pesquisador defendeu ainda a aproximação entre a produção do conhecimento científico e a formulação de políticas públicas e o fortalecimento da relação entre saúde e democracia.

Assista trechos da entrevista em no canal Análise Política em Saúde no Youtube.

Confira a entrevista.

 

Observatório de Análise Política em Saúde: “Acompanhamento das Decisões Judiciais Relativas à Saúde” é o nome de um dos eixos temáticos que compõe o Observatório de Análise Política em Saúde. Como coordenador deste eixo, como você analisa as consequências do fenômeno da judicialização para a organização e financiamento das ações no setor saúde, especialmente no que diz respeito ao sistema público?

Luis Eugenio de Souza: A judicialização é um fenômeno complexo que tem múltiplos efeitos, múltiplas consequências. Em primeiro lugar é preciso registrar que é um avanço democrático o cidadão/a cidadã ter direito de recorrer à justiça para garantir um direito seu. A nossa constituição estabelece que a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Se o cidadão se sente lesado nesse direito tem o direito de recorrer à Justiça – e é bom que o faça. Obviamente esse grande número de ações judiciais tem um impacto muito significativo na gestão da saúde e revela, antes de tudo, uma dificuldade das políticas de saúde, das ações do Poder Executivo. No caso dos medicamentos, por exemplo, que são um grande alvo das ações judiciais, há claramente uma insuficiência da política de assistência farmacêutica, sobretudo na divulgação para a sociedade das suas diretrizes, da sua disponibilidade. Nós temos uma boa política de assistência farmacêutica, ainda que haja em muitos municípios e estados dificuldades na implementação dessa política. Às vezes faltam itens que compõem as listas de medicamentos – seja a farmácia básica, seja a especializada ou a estratégica – e que por dificuldade de gestão, falta de recursos ou da burocracia não estão disponíveis. Nesse sentido, a judicialização é uma pressão sobre o Poder Executivo para que ele melhore a sua gestão.
Mas isso é apenas parte do problema. É preciso reconhecer que a judicialização, em parte, é devida a uma pressão da indústria farmacêutica e de setores interessados na incorporação de novas tecnologias que ainda não foram aprovadas – às vezes no que diz respeito ao registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, às vezes à sua incorporação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – e utilizam a via judicial, seduzindo os pacientes e os profissionais de saúde, particularmente os médicos, e associando isso aos operadores do Direito, seja o Ministério Público, seja advogados particulares ou juízes, para com essas ações forçarem a compra pelo setor público de medicamentos que muitas vezes não estão aprovados.
Há ainda um terceiro fator muito importante na determinação desse volume muito grande de ações judiciais, que é a falta de adesão dos profissionais que são prescritores (médicos em particular, mas também de dentistas) às listas oficiais do SUS. Nós tivemos uma pesquisa no ISC, que foi a dissertação de mestrado de Erick Lisboa, que mostrou que a maior parte das ações judiciais visando a disponibilização da insulina análoga aos portadores de diabetes decorre da não-adesão dos profissionais médicos às listas do SUS. Os estudos científicos mostram que não há vantagem, em termos de segurança e eficácia, da insulina análoga em relação à insulina humana NPH. No entanto, os prescritores quando entrevistados, ou quando analisados o processo, acreditam que há. Se eles estão influenciados ou não pela indústria farmacêutica a pesquisa não avaliou, mas há claramente uma falta de adesão.

Nós temos de um lado as falhas nas políticas e programas de saúde, do outro lado uma pressão da indústria farmacêutica e, por fim, uma falta de adesão, de conhecimento, dos prescritores em geral às listas oficiais do SUS. Então o fenômeno da judicialização é extremamente complexo e tem um efeito grande do ponto de vista orçamentário e financeiro. São muitas ações, muitas vezes são drogas caras, que têm um impacto muito grande no orçamento.

Algumas secretarias de Saúde ou boa parte delas estão se organizando administrativamente para tentar antecipar as demandas judiciais e, nesse sentido, conseguir fazer compras com mais eficiência, com menos gastos, melhor relação custo-benefício, conseguindo assim medicamentos mais baratos. Outras ainda estão sofrendo impacto muito grande dessas decisões judiciais que, obviamente, dificultam a gestão.

Por trás disso há todo um debate sobre o direito individual e o direito coletivo, a questão da igualdade: em que sentido essas ações judiciais, que às vezes beneficiam uma pessoa que tem uma doença rara e utiliza um medicamento caro, são justas do ponto de vista ético, já que vão reduzir recursos para outros problemas de saúde que atingem milhares ou milhões de pessoas. Esse debate é difícil de fazer num momento em que ainda há falhas na administração, na gestão. É efetivamente essa pessoa que foi beneficiada com a ação judicial que está prejudicando o acesso de todas as outras? Ou são as falhas da gestão? Então o fenômeno da judicialização é complexo, tem inúmeras consequências e precisa ser estudado para ser melhor conhecido e, com isso, orientar intervenções de políticas públicas que comecem com a melhoria de ações do Poder Executivo, mas que também passem por informar melhor o Poder Judiciário no sentido de tomar decisões e pronunciar sentenças embasadas na técnica e no conhecimento das políticas de saúde.

 

OAPS: O debate acerca da judicialização da saúde envolve a necessidade de diálogo entre os campos da saúde e do direito. Como isso tem acontecido e como essa relação pode ser trabalhada?

Luis Eugenio de Souza: A relação entre o campo da saúde e do direito tem se estreitado. Não é fácil porque são dois mundos com linguagens, valores e questões diferentes, no entanto, o fenômeno da judicialização tem propiciado isso. O próprio Conselho Nacional de Justiça realizou há alguns anos audiência pública e tem divulgado e produzido orientações para os diversos juízes. Por outro lado, tem se constituído também assessorias junto aos tribunais com profissionais de saúde, em geral ligados às secretarias de Saúde, para subsidiar os juízes em suas decisões. Por outro lado ainda, no campo da saúde, os profissionais da saúde, em particular da saúde coletiva, têm também se debruçado enquanto pesquisadores sobre essas questões. Há produção de teses e dissertações que vem analisando esse fenômeno. Há iniciativas como a da Abrasco, que realizou neste ano de 2015 seminários em que são convidados profissionais do direito e da saúde para debater. Acho que esse processo está em curso, precisa ser acelerado e aprofundado, mas as perspectivas são muito positivas.

 

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