A proposta do governo de criação de um novo imposto para financiar a saúde, similar à antiga Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), reacendeu nos últimos dias a questão do subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a falta de alternativas discutidas amplamente com a sociedade. Sem uma proposição clara para o novo tributo, foi especulada uma alíquota de 0,38%, cerca de R$ 80 bilhões com destinação exclusiva para a saúde e distribuição dividida entre União, estados e municípios. O anúncio da “nova CPMF” veio acompanhado da notícia de que o governo enviará a proposta orçamentária para 2016 com uma previsão de déficit de R$ 30,5 bilhões. A proposta de nova contribuição específica motivou rápidos posicionamentos de apoio e de desagravo de vários setores da sociedade. Rápido também foi o recuo do governo que, a princípio, descartou a iniciativa.

Para Livia Angeli Silva, professora da Escola de Enfermagem da UFBA e representante do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes na Bahia, o recuo do governo é um indício do quanto as discussões em torno do financiamento da saúde estão reféns de forças conservadoras com forte influência nas decisões políticas do país. “Toda e qualquer proposta que represente algum tipo de ganho para as políticas sociais está sendo combatida tanto pelo parlamento conservador, quanto por aqueles que compõem o atual governo e que representam o setor financeiro. E o pior, são estes que têm a maior força dentro do governo. Mesmo sabendo que os problemas do financiamento da saúde não se resolvem com a volta da CPMF, esse recuo do governo só demonstra o quão ele está refém daqueles que não querem que avanços aconteçam. Logo, questões maiores relacionadas ao financiamento da saúde estarão longe de avançar nessa correlação de forças”, analisa.

Faltou mobilização
A recriação do tributo – cogitada e descartada em um espaço de poucos dias, não foi acompanhada de um esforço de mobilização de atores e movimento sociais com atuação na área e provocou irritação de representantes dos setores empresarial e financeiro. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) classificou a proposta como “absurda”. Entidades como o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) emitiram notas de apoio à criação de um novo tributo específico para a saúde. “O Conass, que desde a extinção da CPMF, em 2007, vem lutando por mais recursos para a saúde, entende que a criação de uma contribuição específica e prioritária para a saúde pode ajudar a efetivar as ações e os serviços de saúde, beneficiando a população”, afirmou em nota o presidente do Conselho, João Gabbardo dos Reis.

A decisão do governo de descartar a recriação do imposto foi motivada, segundo o ministro da Saúde, Arthur Chioro, pela falta de elementos suficientes para discussão sobre viabilidade e sustentação da proposta. Ainda de acordo com Chioro, a criação de um novo tributo não está mais na pauta do governo e as alternativas para a escassez de recursos para a saúde serão discutidas com a sociedade e o Congresso.

Livia Angeli avalia que faltou debate com a sociedade e, apesar do problema do subfinanciamento, nem toda medida para aumentar as receitas para a saúde é válida. “Já estamos no limite da classe trabalhadora pagar as contas desse país e as grandes fortunas ficarem a salvo. A CPMF poderia significar um aporte maior de recurso, mas temos que refletir sobre quem estaria sendo mais uma vez onerado”, observa. “É claro que faltou debate com sociedade, até mesmo para se construir uma alternativa minimamente defensável em um momento em que alguns extratos sociais já estão sendo tão penalizados com as medidas de ajustes fiscal. Se em temas que já são amplamente debatidos, como a redução da maioridade penal, por exemplo, o conservadorismo já está vencendo no parlamento, propostas que fortaleçam as políticas sociais não terão a menor chance sem amplo debate, defesa e intensa mobilização da sociedade”, conclui.

O debate da saúde no Legislativo
É no Congresso Nacional que as propostas de financiamento para o SUS são rejeitadas ou aprovadas. Com a função de representar o povo brasileiro, o Legislativo tem por missão debater e legislar sobre assuntos de interesse nacional. A compreensão de como isso acontece quando o assunto é saúde é um dos temas estudados no Observatório de Análise Política em Saúde, no eixo “Acompanhamento de Iniciativas do Poder Legislativo Federal em Saúde”, coordenado pela professora Ana Maria Costa (ESCS/DF). Pesquisadora do eixo e coordenadora da pesquisa “Análise do Panorama de Saúde no Legislativo”, em desenvolvimento, Raquel Abrantes Pêgo (ESCS/DF) aponta algumas características relacionadas à visão do Congresso Nacional em relação ao setor saúde como um todo e ao SUS em particular. Para Raquel, a atual legislatura, caracterizada por fragmentação partidária e dispersão de poder, é um desafio para os defensores do SUS. “A 55º legislatura resulta de um processo eleitoral muito competitivo. De toda forma, exigirá das forças políticas que apostam no SUS Constitucional contar com lideranças parlamentares com capacidade de conformar coalizões que possam respaldar suas propostas ou derrotar aquelas não alinhadas com o SUS na hora das votações e garantir a disciplina dos votos dos partidos participantes. Terão que explorar as posições políticas, os desejos e ambições pessoais de cada membro”, explica.

A partir de 1º de janeiro de 2015, o número de partidos com representação na Câmara dos Deputados, e consequentemente no Congresso Nacional, aumentou de 22 para 28. Além da maior pluralidade partidária, que pode dificultar a formação de alianças e acordos políticos, Raquel chama a atenção para dois atores: Eduardo Cunha (PMDB), líder da Câmara, e as entidades médicas, que participaram ativamente nas eleições de 2014, tomando posição e fazendo campanha contra a reeleição de Dilma Rousseff. “Estes, formados na ideologia liberal, através de suas corporações, exercem muita influência no Congresso, como se pode presenciar na legislatura passada por ocasião da votação da Lei Mais Médicos e da votação da Regulação do Ato Médico e como estamos vendo agora com a questão do cadastro das especialidades”.

No caso de Eduardo Cunha, pesquisa de Lígia Bahia e Mário Scheffer aponta que o deputado federal é um dos que mais receberam recursos de empresas de planos de saúde (veja relatório aqui). Raquel destaca a atuação de Cunha na votação do financiamento de campanhas por empresas privadas – o Supremo Tribunal Federal retoma o julgamento sobre financiamento essa semana (veja aqui) e na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 451. “Um dos seus primeiros atos foi desarquivar a PEC 451, da qual ele é autor e que insere planos de assistência à saúde como direito dos trabalhadores, ao lado do FGTS, seguro desemprego e licença maternidade. Na prática, o texto obriga as empresas a pagarem planos de saúde privado para todos os seus empregados, o que eleva o número de clientes de 51 milhões para 71,5 milhões de pessoas”.

Raquel afirma que a atual legislatura aponta não ser muito favorável ao SUS: “Os trabalhos parlamentares estão iniciando e o ‘fator Eduardo Cunha’ caracterizado pelo seu protagonismo e uma agenda identificada com os setores conservadores é hoje analisado como um elemento que turva a cena política e não é um bom indicador para o SUS”.

“Um elemento importante que não pode ser esquecido é o contexto, o cenário político, econômico-ideológico sobre o qual atua a nova Legislatura, que parece não ser muito favorável ao SUS constituinte. Este cenário onde as ideologias conservadoras ganham visibilidade e se mobilizam e mesclam com um descontentamento geral e difuso em torno ao mau funcionamento dos serviços públicos pode colocar obstáculo à conformação de uma coalizão para o SUS. Soma-se a isto o desgaste tanto do executivo como de seu partido, o PT, e da coalizão eleitoral que apoia a candidata do partido”, pontua Raquel.

Contudo, a pesquisadora destaca algumas ações legislativas em andamento que podem impactar positivamente no SUS:

  • PL 1721/2015 da Dep. Jandira Fegalhi – PcdoB: Trata da vedação da participação direta ou indireta de empresa ou de capital estrangeiro na assistência à saúde. Altera dispositivos da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, inseridos pelo art. 142, da Lei no 13.097, de 19 de janeiro de 2015.
  • PL 1014/2015 do Dep. João Daniel – PT/SE: Dispõe sobre a proibição da pulverização aérea de agrotóxicos em todo território brasileiro.
  • PEC 01/2015 do Dep. Vanderlei Macris – PSDB/SP: Altera o art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre o valor mínimo a ser aplicado anualmente pela União em ações e serviços públicos de saúde, de forma escalonada em cinco exercícios: 15%, 16%, 17%, 18% e 18,7%.