Qual o equilíbrio entre a agilidade e o cuidado na avaliação e no controle dos riscos que podem afetar a saúde da população? A atuação da Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária diante do pedido de registro de uma nova tecnologia de combate a doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, como dengue, Zika e Chikungunya, foi alvo de críticas de uma coluna publicada no Jornal Folha de S. Paulo, no último domingo (23). A tecnologia em questão é uma linhagem de mosquitos geneticamente modificados OX513A, produzidos pela empresa britânica Oxitec, que ao serem liberados no meio ambiente e copularem com fêmeas silvestres produzem larvas que morrem antes de chegar à fase adulta. Um editorial publicado dois dias depois (25) reiterou a cobrança pela celeridade da Agência no processo de registro, que, segundo o jornal, não pode ser atrasado por “preconceitos antitecnológicos”.

O Observatório de Análise Política em Saúde conversou com pesquisadoras do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) sobre o assunto.

É um processo

Classificada pelo colunista Marcelo Leite como “promissora” no combate à epidemia de dengue no país, a tecnologia não possui parâmetros e trâmites definidos para obtenção de registro comercial no Brasil. A Oxitec obteve licença da CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança para liberação dos insetos no meio ambiente em larga escala, em abril de 2014, e solicitou o registro comercial da inovação à Anvisa – sem esse registro, a empresa não pode comercializar os mosquitos transgênicos. O pedido encontra-se em análise pela diretoria colegiada do órgão, que aprovou uma proposta de regulamentação sobre “controle de vetores patógenos urbanos” que será alvo de consulta pública, ainda sem prazo definido. Uma questão que, para o colunista, esbarra nas “engrenagens da burocracia nacional”.

Coordenadora do eixo temático “Políticas de Medicamentos, Assistência Farmacêutica e Vigilância Sanitária” do OAPS, a professora Ediná Alves Costa (ISC/UFBA) considera que este caso é diferente do registro de produtos como medicamentos, vacinas, saneantes sanitários (produtos usados em ambientes domésticos) e agrotóxicos, para os quais existe um conjunto de leis, regulamentos técnicos e sistemáticas para análise do pedido de registro. “Em meu entendimento, a Anvisa ainda não tem esta prática de registrar um mosquito transgênico e é preciso ter muito cuidado com uma inovação desta natureza. É lógico que quem quer registrar um produto quer rapidez. A empresa que criou essa inovação quer vender o seu produto, mas a vigilância sanitária tem uma responsabilidade com a saúde da população e do ambiente. Não é um registro como de um medicamento, por exemplo, já que a natureza dessa tecnologia é diferente. Quando a Agência refere que precisa fazer uma consulta pública é porque as regras ainda não estão dadas”, afirma.

A professora explica que o registro de um produto é um processo delicado e deve ser rigoroso já que, após a concessão, a empresa detentora ganha o direito de fabricar a tecnologia e colocá-la no mercado, disponível à população. “É preciso competência técnica e científica para avaliar os benefícios de uma inovação, mas também os riscos de danos às pessoas e ao meio ambiente. No caso de um medicamento, se faz avaliação de eficácia e segurança e, no caso dessa tecnologia, também terá que ser feita essa avaliação. Em vigilância sanitária são centrais esses dois conceitos: eficácia e segurança. Se existem provas de eficácia dessa inovação, há provas de segurança? A segurança não se atém apenas ao momento presente, mas se estende no tempo: quais riscos essa tecnologia tem para as pessoas e o meio ambiente a longo prazo?”, questiona.

Tecnologia ainda não foi liberada para venda em nenhum país
A falta de um trâmite estabelecido para permitir a comercialização da tecnologia não é exclusividade brasileira. A liberação da CTNBio permite apenas a realização de testes de campo com liberação controlada dos mosquitos. Para Glória Teixeira, docente e pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba, “a Anvisa, assim como o FDA (órgão americano semelhante a Anvisa), a Agência Européia e a Agência da China devem mesmo tomar os cuidados necessários e, principalmente por se tratar de uma tecnologia nova, isso demora. Há uma demora de processo e de encontrar pareceristas para fornecer os pareceres, isso é a questão da regulação. Não é porque a prova de conceito foi boa que vamos aplicar diretamente”, explica.

A prova de conceito citada pela pesquisadora foi a publicação de um artigo, citado pelo colunista Marcelo Leite. “Há resultados que apontam que esse mosquito transgênico, ao ser liberado em grande quantidade no meio ambiente e copular com a fêmea, produz descendentes, ou seja, ovos, que são inviáveis. Isso tem sido mostrado em estudos de campo, inclusive com a recente publicação, como está citado no artigo, em uma boa revista científica. Mostra que a prova de conceito foi em direção à hipótese de que seria possível substituir o mosquito selvagem pelo mosquito geneticamente modificado. Isso cientificamente está comprovado, mas existe uma distância muito grande entre isso ter ocorrido em um ensaio comunitário, em um bairro de Juazeiro, e isso ser realmente eficaz ou suficiente para ser indicado como uma medida de controle de dengue. Não é porque um artigo foi publicado e houve uma prova de conceito que reduziu a população de mosquitos selvagens que isso tem aplicação imediata na população em larga escala. Em meu entendimento, outros ensaios e experimentos deverão ser conduzidos”.

Glória Teixeira cita outras tecnologias em desenvolvimento e testes, como vacinas e tecnologias também de controle vetorial, como a infecção do mosquito por uma bactéria chamada Wolbachia. “É muito bom porque nós temos algumas tecnologias promissoras em estudo. Mas, inclusive para proteger nossa população humana, temos que seguir os trâmites da regulação e os trâmites de eficácia e efetividade para serem incorporados pelo SUS”, destacou.

Ediná Alves Costa, que também é coordenadora do Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Vigilância Sanitária do ISC-UFBA, propõe reflexões sobre o próprio papel da Anvisa no processo de registro desse tipo de tecnologia. “Uma primeira questão que eu colocaria é refletir sobre essa tarefa solicitada à Anvisa – o registro desse mosquito transgênico é competência da Agência? Tão somente da Anvisa? É preciso ter cautela, sob o princípio da precaução e dar os encaminhamentos mais adequados possíveis para uma resposta do ponto de vista institucional, já que é uma tecnologia diferente e parece que ainda não se dispõe de conhecimentos científicos suficientes e não há normas sanitárias para isso. Os produtos biológicos para os quais existem normas de registro são de outra natureza, como vacinas e soros; no caso desta inovação estamos falando de um ser vivo que pode ter implicações ainda não avaliadas”, pontua.

Posição da Abrasco
A Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva se manifestou por meio de Nota Técnica publicada em setembro de 2014 e ratificada em fevereiro de 2015 sobre a aprovação da CTNBio para a tecnologia da Oxitec. A associação declarou ser contrária à autorização pela Anvisa e pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, responsável pelo controle da endemia e dos surtos epidêmicos de dengue, para utilização do mosquito para controle vetorial da dengue. Para a Abrasco, faltam respostas técnicas para várias questões sobre a tecnologia e o controle da dengue realizado por meio do mosquito transgênico deve ser debatido publicamente com apoio das comissões de Bioética e de Meio Ambiente da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil. Confira detalhes sobre o posicionamento da Abrasco e a resposta da empresa Oxitec no site da entidade.

 

A adoção de novas tecnologias em saúde exige análises em várias áreas, como segurança, eficácia e impacto econômico, principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS). Confira bate-papo sobre a adoção de novas tecnologias com Érika Aragão, pesquisadora do eixo temático “Estudos e Pesquisas em Políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde” do OAPS.

Qual a importância de estudos sobre o impacto de novas tecnologias para a adoção destas em larga escala?
O número crescente de novas tecnologias em saúde disponíveis no mercado é muito grande, sobretudo aquelas voltadas ao tratamento de doenças crônicas não transmissíveis. Porém, para que estas tecnologias sejam adotadas, é necessário que sejam feitas avaliações relativas à eficácia das mesmas (como os ensaios clínicos), sobre sua efetividade e seu custo-efetividade, dentre outras dimensões. Por exemplo, uma nova tecnologia para o tratamento da artrite reumatóide pode ter uma efetividade ligeiramente superior à adotada em determinado sistema de saúde, mas seu custo pode ser significativamente superior ao daquela, o que implicaria gastos muito grandes para o sistema de saúde, comprometendo o orçamento de outras áreas. Isso é tão importante para sistemas universais como o SUS que países como a Inglaterra têm agência especializada na avaliação destas tecnologias. No Brasil nós temos a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (REBRATS), que apesar de não ser uma agência, busca promover a cultura da ATS para incorporação de tecnologias, padronizar métodos, dentre outros objetivos.

De que forma a pressão econômica empresarial atua para a adoção de novas tecnologias no sistema público de saúde?
Veja, a indústria de saúde é uma das maiores do mundo em termos de faturamento. Somente a indústria farmacêutica faturou, em 2013, mais de 800 bilhões de dólares, segundo o IMS Heath. Apenas 10 empresas respondem por cerca de 50% deste montante. Estas companhias são multinacionais que investem pesado no desenvolvimento de novos produtos e em marketing. Atuam junto aos profissionais de saúde, pressionam os congressos dos países para ajustarem ou criarem marcos regulatórios favoráveis a práticas monopolistas, como maior rigor nas leis de patentes etc. Quando a empresa tem uma patente só ela pode comercializar aquele medicamento. Ela tem um monopólio temporário. O que dá um poder de negociação enorme à empresa detentora da mesma. E ainda atuam diretamente junto ao consumidor em muitos casos para ter o retorno dos seus investimentos e garantir lucro aos acionistas, já que é este o objetivo do setor privado – as empresas precisam ampliar seu mercado, seja público ou privado. Não é por acaso que há uma pressão enorme para incorporação de novas tecnologias no SUS – que tem entre seus princípios fundamentais a universalidade e integralidade – muitas vezes através da via judicial. Porém, não podemos esquecer que o orçamento da saúde é limitado e temos que pressionar no sentido de ampliar os gastos com atenção primária, pois se os problemas de saúde forem resolvidos ou controlados neste nível os pacientes recorrem menos a níveis mais complexos de atenção.